Escavando a purpurina: um mergulho na história LGBT do Brasil
A história é contada pelos vencedores. E, certamente, os LGBTs não parecem ser os autores. Dos poucos rastros que existem ao olhar para trás, os jornais Chanacomchana e Lampião da Esquina ou as bíblias Devassos no Paraíso e Além do Carnaval se destacam. No entanto, quase tudo foi produzido durante ou pós o período de repressão militar no Brasil, entre 1964 e 1985.
Mas esse jogo está virando. Pesquisadores têm ido a campo, buscando pelos trapos da memória LGBT brasileira. O acervo Bajubá, um dos mais destacados, começou em 2010. E foi por acaso.
Hoje, alguns itens do arquivo fazem parte da mostra Madalena Schwartz – Travestis e transformistas na SP dos anos 70, em cartaz no Instituto Moreia Salles em São Paulo até setembro.
As primeiras peças do Bajubá vinham de pessoas que colecionam revistas de pornografia e ou tinham em suas estantes livros da história LGBT. Havia, também, contribuições mais informais. “Às vezes, vinha de pastinha das Spice Girls, pastinha da Madonna, pastinha da Ana Carolina”, relembra Remom Bortolozzi, psicólogo social e um dos membros-fundadores do acervo.
“Em 2010, a gente ainda não tinha o museu da Diversidade, não tinha referencia de aparato público específico sobre memória LGBT. A gente só tinha contato com os livros Devassos no Paraíso [de João Silvério Trevisan], e Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, [de James Naylor Green], mas eram livros sem nova edição, difíceis de achar. Só se encontrava em sebo, por 200, 300 reais”, relembra.
O jeito foi se basear em acervos acadêmicos, como o da Unicamp, e em iniciativas do Grupo Gay da Bahia e do grupo Dignidade, de Curitiba, que digitalizou um dos mais conhecidos jornais gays da década de 80, o Lampião da Esquina.
Mas o estopim para a formação do acervo Bajubá foi a descoberta de um nanquim em um antiquário que retratava uma cena de sexo oral lésbico. O achado despertou nos pesquisadores uma sensação parecida com a de avistar uma pintura rupestre em uma caverna escura.
“Segundo minhas amigas, claramente [o nanquim] foi desenhado por um homem, por que uma mulher estaria chupando o umbigo da outra, não o clitóris”, debocha Bertolozzi. Mas o que chamou mesmo a atenção era a inscrição “4ª ilustração do Eu Sou Uma Lésbica”.
Esses folhetins, descobriu-se depois, eram publicados na Status, uma revista de nu feminino da década de 70, baseados na obra de Cassandra Rios, uma das escritoras mais perseguidas durante a ditadura militar brasileira. Segundo uma reportagem da BBC News Brasil, durante o regime, 36 dos seus 50 livros publicados foram censurados.
“Esses trapos que a gente vai encontrando em antiquários e que pra maioria não significa nada, são a memória LGBT. A gente tem que escavar, ir atrás de sebo, leilões, nas nossas coleções pessoais, que, às vezes, nem nós mesmos damos importância”.
Nas pesquisas, Bertolozzi e sua equipe identificaram identidades e comportamentos vistos hoje como muito recentes, como a de pessoas trans, mas datados do começo do século passado.
A preservação da memória LGBT na América Latina é tema de um ciclo de debates online promovido pelo Instituto Moreira Salles, como parte da mostra Madalena Schwartz. Nos dias 9 e 10 de junho, o evento vai reunir Remom Bortolozzi e a arquivista cubana Librada González Fernández, do Archivo CubaneCuir.
Aqui no Brasil, sem grandes pretensões, o acervo Bajubá deslanchou na esteira da digitalização dos sebos e chegou aos dois mil e quinhentos itens –ainda sem catalogação técnica. Há, no total, 12 colaboradores, em diferentes grupos de trabalho. Os arquivos podem ser acessados pelo site e presencialmente, com agendamento prévio.
De todo o material, destacam-se o acervo de pornografia e arte homoerótica brasileira com mais de 600 edições de revistas da década de 60 aos dias de hoje, uma coleção de medicina, saúde e memória da pandemia de HIV/Aids na década de 80 e exemplares da imprensa alternativa durante a ditadura militar.