Domingo no parque

Em 2013, eu convidei uma urbanista para me dar uma entrevista no parque Augusta, no centro de São Paulo, durante o longo imbróglio sobre a construção de uma área de lazer ali. Eu estava no primeiro ano da faculdade e aquela apuração fazia parte de um exercício da disciplina de jornalismo online. 

Eu tirei um 9, mas com certeza minha nota seria menor se a professora Alexandra Gonsalez, da universidade Metodista de São Bernardo do Campo, onde estudei, soubesse dos outros assuntos muito mais relevantes que deixei de lado para fazer aquela matéria. 

Eu tinha vergonha de morar onde morava, 30 quilômetros ao sul do parque Augusta, num bairro pouco conhecido no distrito do Grajaú, em São Paulo. Por isso, diferentemente de meus colegas, que fizeram pautas tão comezinhas quanto a minha, não falei de alguma questão da minha rua ou do meu bairro. Mas de um lugar duas horas de ônibus, trem e metrô distante de mim.

Meus colegas e meus professores nunca souberam onde eu morava exatamente. Nunca fiz um trabalho em grupo em casa durante a graduação, por exemplo. Aliás, nem no ensino médio. Nem no ensino fundamental. Nunca um colega de escola esteve na minha casa.

Sentia uma grande vergonha do chão de cimento queimado (hoje é moda, mas no começo dos anos 2000 era a opção mais em conta) e das paredes inacabadas da minha casa que, certa vez, foram até o leito de morte de um rato. Depois de comer veneno, o roedor entrou por entre os blocos laranjas de tijolo baiano da sala e dormiu o sono eterno. O mau cheiro motivou uma investigação dos meus pais em busca do pequeno corpo, só mais tarde encontrado. Quebra parede. Tira o rato. Fecha parede.

Eu tinha medo, por exemplo, que, outra vez, a fossa escavada no quintal se abrisse e engolisse tudo, como aconteceu com a lavanderia da minha avó. Sorte ela não estar no tanque no dia, pois seria engolida pela mistura de lama e bosta.

Eu não concebia a ideia de levar alguém em casa e, de repente, acontecer um assassinato. Na infância e na adolescência, não foram poucas as vezes em que minha mãe e eu, na volta do culto de domingo, desviamos de ruas em que alguém havia acabado de ser executado.

Se eu contasse tudo isso à professora Alexandra, talvez ela baixasse minha nota. Por que raios fui até o parque Augusta falar de algo que toda semana falavam aqui na Folha ou no SPTV, se havia questões ao meu redor como acúmulo de lixo e entulho e a infestação de roedores, falta de esgoto encanado e a violência urbana?

Esse aprendizado, que poderia se restringir ao fazer jornalístico, mas que levo pra vida, desmoronou em minha cabeça nesta manhã de domingo (27), quase uma década depois, ao pensar sobre amanhã, o dia do orgulho LGBT. Do que eu devo me orgulhar? Por anos achei que me posicionar como alguém parte desta comunidade fosse ser meu maior desafio. Mas meu armário era muito maior, tinha muito mais coisas.

Durante toda a minha vida profissional até aqui segui negando quem eu era. No meu primeiro emprego como jornalista, mimetizei boa parte dos meus colegas, frequentei os mesmos bares, li os mesmos livros e tive as mesmas opiniões. Não que isso tenha sido errado. Mas eu absorvia tudo aquilo e não dava nada em troca, porque achava que não tinha o que oferecer. Me via como um terreno vazio, mas, mal sabia eu, já estava completamente loteado.

Levei um tempo até conhecer algumas referências culturais, políticas e estéticas de que todos falavam porque passei a infância e a adolescência na igreja, o único teatro, o único cinema e o único espaço de convivência social e política que eu podia acessar com o dinheiro que tinha e sem enfrentar longas distâncias de ônibus e trem.

Foi nesta manhã de domingo que percebi que meu orgulho de ser LGBT só pode existir se eu puder me orgulhar de todo o resto. Ter uma fé cristã-protestante e uma origem periférica são parte do que sou. E é isso o que posso oferecer.

Amanhã é o dia de LGBTs se orgulharem por quem são. E por completo. Orgulho por ser LGBT e torcedor de um time de futebol. E pai. E mãe. E candomblecista. E operador de máquinas agrícolas. E reverendo. E cientista. E médica do SUS. E evangélico. E tudo o que não tem mais espaço no armário e é motivo de orgulho.