Todas as Letras https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br Diversidade afetiva, sexual e de gênero Wed, 01 Dec 2021 18:54:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Domingo no parque https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/domingo-no-parque/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/domingo-no-parque/#respond Sun, 27 Jun 2021 18:50:22 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/diferente-300x215.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=448 Em 2013, eu convidei uma urbanista para me dar uma entrevista no parque Augusta, no centro de São Paulo, durante o longo imbróglio sobre a construção de uma área de lazer ali. Eu estava no primeiro ano da faculdade e aquela apuração fazia parte de um exercício da disciplina de jornalismo online. 

Eu tirei um 9, mas com certeza minha nota seria menor se a professora Alexandra Gonsalez, da universidade Metodista de São Bernardo do Campo, onde estudei, soubesse dos outros assuntos muito mais relevantes que deixei de lado para fazer aquela matéria. 

Eu tinha vergonha de morar onde morava, 30 quilômetros ao sul do parque Augusta, num bairro pouco conhecido no distrito do Grajaú, em São Paulo. Por isso, diferentemente de meus colegas, que fizeram pautas tão comezinhas quanto a minha, não falei de alguma questão da minha rua ou do meu bairro. Mas de um lugar duas horas de ônibus, trem e metrô distante de mim.

Meus colegas e meus professores nunca souberam onde eu morava exatamente. Nunca fiz um trabalho em grupo em casa durante a graduação, por exemplo. Aliás, nem no ensino médio. Nem no ensino fundamental. Nunca um colega de escola esteve na minha casa.

Sentia uma grande vergonha do chão de cimento queimado (hoje é moda, mas no começo dos anos 2000 era a opção mais em conta) e das paredes inacabadas da minha casa que, certa vez, foram até o leito de morte de um rato. Depois de comer veneno, o roedor entrou por entre os blocos laranjas de tijolo baiano da sala e dormiu o sono eterno. O mau cheiro motivou uma investigação dos meus pais em busca do pequeno corpo, só mais tarde encontrado. Quebra parede. Tira o rato. Fecha parede.

Eu tinha medo, por exemplo, que, outra vez, a fossa escavada no quintal se abrisse e engolisse tudo, como aconteceu com a lavanderia da minha avó. Sorte ela não estar no tanque no dia, pois seria engolida pela mistura de lama e bosta.

Eu não concebia a ideia de levar alguém em casa e, de repente, acontecer um assassinato. Na infância e na adolescência, não foram poucas as vezes em que minha mãe e eu, na volta do culto de domingo, desviamos de ruas em que alguém havia acabado de ser executado.

Se eu contasse tudo isso à professora Alexandra, talvez ela baixasse minha nota. Por que raios fui até o parque Augusta falar de algo que toda semana falavam aqui na Folha ou no SPTV, se havia questões ao meu redor como acúmulo de lixo e entulho e a infestação de roedores, falta de esgoto encanado e a violência urbana?

Esse aprendizado, que poderia se restringir ao fazer jornalístico, mas que levo pra vida, desmoronou em minha cabeça nesta manhã de domingo (27), quase uma década depois, ao pensar sobre amanhã, o dia do orgulho LGBT. Do que eu devo me orgulhar? Por anos achei que me posicionar como alguém parte desta comunidade fosse ser meu maior desafio. Mas meu armário era muito maior, tinha muito mais coisas.

Durante toda a minha vida profissional até aqui segui negando quem eu era. No meu primeiro emprego como jornalista, mimetizei boa parte dos meus colegas, frequentei os mesmos bares, li os mesmos livros e tive as mesmas opiniões. Não que isso tenha sido errado. Mas eu absorvia tudo aquilo e não dava nada em troca, porque achava que não tinha o que oferecer. Me via como um terreno vazio, mas, mal sabia eu, já estava completamente loteado.

Levei um tempo até conhecer algumas referências culturais, políticas e estéticas de que todos falavam porque passei a infância e a adolescência na igreja, o único teatro, o único cinema e o único espaço de convivência social e política que eu podia acessar com o dinheiro que tinha e sem enfrentar longas distâncias de ônibus e trem.

Foi nesta manhã de domingo que percebi que meu orgulho de ser LGBT só pode existir se eu puder me orgulhar de todo o resto. Ter uma fé cristã-protestante e uma origem periférica são parte do que sou. E é isso o que posso oferecer.

Amanhã é o dia de LGBTs se orgulharem por quem são. E por completo. Orgulho por ser LGBT e torcedor de um time de futebol. E pai. E mãe. E candomblecista. E operador de máquinas agrícolas. E reverendo. E cientista. E médica do SUS. E evangélico. E tudo o que não tem mais espaço no armário e é motivo de orgulho.

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Não é opinião, é homofobia https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/01/nao-e-opiniao-e-homofobia/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/01/nao-e-opiniao-e-homofobia/#respond Tue, 01 Jun 2021 23:18:26 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/8f83ea34983968dee98ff336d2a54f69bdfa170476b89320dae8da61c84c1636_5ec9da508ba55.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=422 Na maior crise sanitária do século, parte da classe artística gasta energia para vociferar preconceito contra LGBTs. Na bolha do Twitter, talvez Caio Castro, com suas sofríveis atuações na televisão, a ex-bbb e pretensa apresentadora Rafa Kalimann e Patrícia Abravanel, com seu mal ajambrado programa matinal, não sejam relevantes. Mas são.

Têm milhares de seguidores nas redes, estão em programas nas maiores redes de televisão do país e são modelo de beleza e sucesso para muitos jovens. Mesmo com esse rojão de responsabilidade nas mãos, preferem lutar pelo direito de serem preconceituosos enquanto a Covid-19 faz duas mil vítimas todo dia no Brasil.

Eles não são os únicos a desviar do tema mais pontiagudo de nossos dias. Nas redes sociais, há quem clame por posicionamentos de astros e estrelas brasileiros em favor de vacinas e contra medidas descabidas do governo e falas alucinadas do presidente da República. 

O tempo das lives para nos fazer esquecer fugir do tédio dos primeiros meses da quarentena sem prazo para acabar já passou, meus caros. Os Estados Unidos mostraram que é possível retomar a vida quando se compra vacinas. Israel demonstrou que é possível pisar lá fora com segurança se tiver vacina no braço. O estudo de Serrana, aqui do Brasil, evidenciou que as vacinas funcionam, diminuem internações e mortes e não reduzem a existência humana à forma de qualquer réptil que seja. 

E quanto a nós? Quando teremos vacina no braço? Quantos de nós ainda vão morrer de uma doença para qual já há vacina? 

Patrícia Abravanel, em seu programa, ao defender as postagens homofóbicas de Caio Castro, debochou da sigla LGBTQIA+ e disse ser difícil explicar aos filhos como se dão relações homoafetivas.

Patrícia, Rafa, Caio e demais artistas semi-deuses: como se explica ao país que num dos momentos mais tristes de sua história, os senhores estavam dedicados a opinar sobre a vida sexual e afetiva alheia? 

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Vamos ser viados pra sempre? https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/vamo-ser-viado-pra-sempre/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/vamo-ser-viado-pra-sempre/#respond Wed, 05 May 2021 03:02:12 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Design-sem-nome-7-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=390 No episódio 28 do programa Vai Que Cola, do canal Multishow, Paulo Gustavo, na pele da personagem Bicha Bichérrima, e Marcus Majella, como Ferdinando, gritaram uma frase aparentemente boba, mas que uma porção de LGBTs mundo afora sequer imagina ter a segurança de gritar também. “Vamos ser viados pra sempre?”.

Paulo Gustavo, morto nesta terça-feira (4), no Rio de Janeiro, aos 42 anos, levou multidões ao teatro (quantos estiveram pela primeira vez numa plateia por causa dele?), lotou salas de cinema e explodiu na televisão.

Lá, na fábrica de sonhos, o ator mostrou que o sonho de ser gay e aceito pela mãe pode ser real; na vida pessoal, testemunhou que o sonho de LGBTs de formarem uma família é possível também, exige principalmente amor.

Levantando a voz apenas para fazer rir, Paulo Gustavo normalizou a existência LGBT e os relacionamentos homoafetivos rompendo muros como quem escava uma rocha em busca de pedras preciosas.

Por muitas vezes foi criticado por interpretar bichas escandalosas e de, mesmo sem querer, reduzir a chacota o jeito de ser gay. É que quando não riem de nós, podem rir para nós, Paulo sacou que esse era um caminho. Como a gargalhada era certa, tanto fazia. Paulo aproveitou para gritar que queria ser viado pra sempre. E assim será.

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Não é pelas crianças https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/nao-e-pelas-criancas/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/nao-e-pelas-criancas/#respond Thu, 22 Apr 2021 21:04:21 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/foto-blog.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=372 Escondida na imagem dos pequenos, a deputada estadual paulista Marta Costa (PSD) propôs um projeto de lei na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) que proíbe publicidade com LGBTs ou famílias homoafetivas.

A deputada parece desconhecer as crianças da geração Z, pouquíssimo preocupadas com quem fulano, fulana, fulane ou fulanx se deitam, e também parece não saber que orientação sexual não é –pra falar de tempos atuais–, máscara contra o coronavírus, cada dia se escolhe uma.

Marta Costa afirma que as propagandas trazem desconforto emocional a inúmeras famílias e mostram práticas danosas às crianças. É uma falácia. O medo não é de um menino ver um outdoor de shopping com dois pais e uma criança e falar “taí, vou ser gay”. O medo é de que se normalize a existência de uma família LGBT.

Os mais conservadores políticos devem saber: ninguém, numa manhã de terça-feira, depois de beber um gole de café, resolve se tornar LGBT. Afirmo que eles devem saber porque há entre eles mesmos apoiadores LGBTs. Eles sabem. Mas esses conservadores têm medo de que alguém que não é como eles, ou como o pai deles ou como o avô deles tome uma parcela do poder.

Os religiosos sabem que são mínimas as chances de algum governo obrigar padres ou pastores a realizarem cerimonias religiosas de pessoas do mesmo sexo. Mas, vez ou outra, essa profecia apocalíptica é levantada. O medo é permitir que aconteça qualquer tipo de união homoafetiva, em qualquer lugar.

Duvido, também, que os homofóbicos, aqueles mais poderosos, se atrevam a negar, digamos, um prato de comida a um LGBT, ou um copo d’água a um LGBT, ou o sal a um LGBT que, com sua voz de LGBT, peça: “me passe o sal, por favor”. Eles só não querem que os desviados tenham assento cativo na mesa. Um prato beleza. Mas, pô, uma cadeira?

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Online, festival Mix Literário mergulha nas camadas da diversidade https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/10/19/online-festival-mix-literario-mergulha-nas-camadas-da-diversidade/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/10/19/online-festival-mix-literario-mergulha-nas-camadas-da-diversidade/#respond Mon, 19 Oct 2020 16:34:36 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Design-sem-nome-1-300x215.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=265 A 3ª edição do festival Mix Literário, um dos braços do festival Mix Brasil, será online, como tem ocorrido com boa parte de eventos recorrentes no calendário, por causa da pandemia do novo coronavírus.

O clima apocalíptico, com a chegada da Covid-19 ao Brasil, e agora distópico, com o “novo normal” imposto pelo distanciamento social, não são exatamente uma surpresa para alguns escritores LGBTQIA+, na opinião do curador do evento, Alexandre Rabelo. “Isso traz quase um caráter profético para nossa comunidade, não é à toa que nos últimos anos muitos autores queer ou minoritários pensaram a questão do fim do mundo e das distopias, temas que também iremos abordar em nossos encontros”, diz.

Os efeitos da pandemia, as discussões sobre violências e um olhar para o conservadorismo serão pauta de uma mesa que discutirá saúde mental. No entanto, o diferencial das discussões literárias do evento está no mergulho em camadas da diversidade que muitas vezes ficam à margem da própria comunidade LGBT.

Alexandre Rabelo, curador do festival Mix Literário – divulgação

“Se hoje falamos alguma coisa sobre transexualidade no meio literário e nas mídias, ainda falamos quase nada sobre narrativas transmasculinas, pauta que nos permite pensar a possibilidade de algum tipo de masculinidade que não seja tóxica. A emergência de livros escritos por pessoas não-binárias também gera uma resposta estética que acolhe muito bem as contradições e ri das polarizações”, pontua Rabelo.

O evento lança um olhar para discussões emergentes, como publicações da teoria queer e obras de LGBTs na condição de refugiados, e para o florescimento de uma nova safra de publicações de escritores de estados do nordeste.

Os vídeos das conversas serão disponibilizados gratuitamente entre os dias 11 e 22 de novembro no site do Mix Brasil. No final do ano, ficarão disponíveis no canal da Biblioteca Mário de Andrade. Colaboram na curadoria Natalia Borges Polesso e Marcelo Ariel. A Assistência é de Alexandre Willer.

Prêmios literários

Neste ano o prêmio Mix Literário entregará o troféu Coelho de Prata para alguma obra publicada em livro físico entre outubro de 2019 e setembro de 2020, cuja narrativa se relacione a vivências e questões específicas da comunidade LGBTQIA+. Em 2020, a organização abriu inscrições para autores publicados em todos os países de língua portuguesa.

A novidade desta edição é o prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura, destinado à publicação em livro de uma obra literária inédita que tenha como foco a diversidade. A ação é uma parceria com a editora Reformatório.

Confira abaixo a programação:

Transmasculinidades em pauta e livro 

Com Luiz Fernando Prado Uchoa e Jordhan Lessa

Mediação Alexandre Willer

Distopias queer brasileiras, desviantes no fim do mundo 

Com Luisa Geisler, Wallace Ramos 

Mediação de Alexandre Willer

Dissidências queer na literatura francesa e a liberalização dos costumes 

Com Ricardo Lisias, Marcelo Ariel e Maurício Salles Vasconcelos 

Mediação de Alexandre Rabelo

Narrativas antiajuda: saúde mental na literatura queer 

Com Natalia Borges Polesso, Francisco Malmann, Mike Sullivan 

Mediação de Maya Falks

Djuna Barnes para além das divisões binárias

Com Beatriz Regina Guimarães Barbosa 

Mediação de Alexandre Rabelo

Audre Lorde no Brasil 

Com Tatiana Nascimento e Cidinha da Silva 

Mediação de Alexandre Rabelo

Olhares queer nordestinos 

Com Jarid Arraes, Itamar Vieira Junior, Marco Severo 

Mediação de Alexandre Rabelo

A emergência de publicações da teoria queer 

Com Helena Vieira 

Mediação de Paulo Salvetti

Poesia queer transmidiática 

Com Bobby Baq e Arthur Moura Campos

Mediação de Alexandre Rabelo

Printemps Littéraire: Refugiados e o livro como resistência 

Com Leonardo Tonus 

Mediação de Alexandre Rabelo

 

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Devota de Nossa Senhora, ex-freira e lésbica https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/09/27/devota-de-nossa-senhora-ex-freira-e-lesbica/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/09/27/devota-de-nossa-senhora-ex-freira-e-lesbica/#respond Sun, 27 Sep 2020 15:53:17 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Design-sem-nome-1-1-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=250 Esqueça o clichê do LGBT que busca na religião uma fuga para sua sexualidade. Antes de ingressar –e passar quase 9 anos –em um convento, a assistente social Marília Gabriela Holanda, 34, nem pensava em sexualidade e afetividade. “Não namorei ninguém antes de ir para o convento”, lembra. 

O caso da ex-freira é, antes de tudo, uma história de determinação. “Eu colocava todas as minhas energias naquilo [entrar para a vida religiosa]”. 

Marília Gabriela queria viver como Santa Teresinha do Menino Jesus, freira carmelita. “É uma vida totalmente reclusa. Eu queria viver como ela: entregar minha vida toda pra Jesus e viver só pra Ele”.

Com 18 anos, comunicou à mãe que iria para o convento. “Fiz aniversário em junho, em julho eu entrei”, relembra.

Parte desta fixação se deve ao tempo de estudo em colégio católico. As idas frequentes a missas e uma pesquisa incessante pela história dos santos católicos ajudaram também na escolha. “Me identificava com essa vida. E conheci a congregação na qual permaneci por este tempo, me identifiquei com a vida delas, que era uma vida de maior oração, não tinha muita missão”. 

Marília Gabriela preferiu não dizer o nome da congregação. A foto que a ex-freira enviou ao blog tem poucas informações do hábito, para evitar represálias.

“Enquanto eu vivi lá dentro, eu vivi intensamente”, conta. Mas a vida passou a ser monótona demais. E, dentro do convento, Marília Gabriela teve sua primeira paixão.

“Eu conheci uma menina, tinha um carinho muito grande por ela e a gente acabou se aproximando muito, e acabou se apaixonando. Eu não sabia bem o que eu tava sentido. Hoje eu eu sei que tava apaixonada”.

A confusão sentimental fez com que Marília Gabriela pedisse para sair. “Eu não queria viver lá dentro se não fosse da maneira correta”, afirma. “Foi muito difícil encarar o mundo aqui fora. Eu tinha deixado de estudar, ia ter de recomeçar a vida, isso assusta. Mas, como eu disse, eu sou muito determinada. Fui determinada a entrar e também a sair”, exclama. 

Antes, no entanto, teve de escrever uma carta, pedindo o desligamento. À madre superiora, Marília Gabriela revelou tudo. “Ela disse que se eu quisesse sair e tentar passar um tempo fora, continuar de hábito, e retornar ao convento, eu poderia”.

Mas Gabriela não aceitou. E voltou para a casa da mãe. Quase uma década depois, o mundo era outro, os amigos da adolescência tinham tomado outros rumos. Ah, e a primeira paixão de Marília Gabriela, dentro do convento, também pediu para sair. E não, as duas não ficaram juntas. Sequer se beijaram.

A garota retornou a sua cidade natal e as duas nunca mais se viram. “Ela apareceu na minha vida só para me dar um clique”, reflete.

Os primeiros meses na nova vida foram duros. Marília Gabriela não se reconhecia sem o hábito, teve sintomas de depressão e encontrou apoio em uma colega, também lésbica e ex-freira. “Ela me ajudou a me enxergar no mundo novamente. E acabei namorando com essa minha amiga”, relata, aos risos. “Ela foi minha primeira namorada. A gente passou 2 anos juntas”.

A história da vida pregressa de Marília Gabriela viralizou nos últimos dias na rede social TikTok. A atual namorada montou um vídeo com o antes e o depois da companheira.

Marília Gabriela e Jéssica Alves. Arquivo pessoal

“A ideia era fazer com que meus seguidores sentissem a mesma coisa que senti quando a conheci. A gente tava conversando, falamos alguma coisa sobre acordar cedo e aí ela falou que acordou por muitos anos às 4h, porque tinha sido freira. Eu tomei um baque!”, relata Jéssica Alves Mota, 28. Elas estão juntas há quase 5 anos.

“Hoje não me considero católica. Mas é difícil dizer isso porque tenho muitas crenças. Continuo devota de Nossa Senhora, acredito em Jesus, acredito em Deus. Mas não concordo com as coisas que a Igreja Católica impõe. Apesar das pessoas me criticarem, apontarem o dedo pra mim, não me importo, porque eu acredito num Deus que é amor e misericórdia, acredito que ele tá feliz comigo porque eu estou feliz”, descreve. 

Marília Gabriela diz que se algum dia sentir vontade de retornar à vida religiosa, pediria “humildemente” para voltar ao convento.

“O Deus que eu acredito não é um Deus castigador, é um Deus de amor”.

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Deve ser um inferno ser LGBTfóbico https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/09/20/deve-ser-um-inferno-ser-lgbtfobico/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/09/20/deve-ser-um-inferno-ser-lgbtfobico/#respond Mon, 21 Sep 2020 02:40:05 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Design-sem-nome-300x215.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=237 Os dias têm sido difíceis para os homofóbicos. Fiquei por alguns minutos olhando as fotos do casamento da Mulher Pepita. Ela estava toda de branco, emocionada, feliz. Talvez muitos homofóbicos tenham perdido também alguns minutos vendo essa foto, espumando sentimentos menos nobres do que os meus.

É que não há dia santo dia que alguém não ladre impropérios contra a comunidade LGBT. Mais recentemente foram os religiosos André e Ana Paula Valadão, pastores da Igreja Batista da Lagoinha, que voltaram ao noticiário com declarações antigas e recentes contra lésbicas, gays, bissexuais e trans.

Homofóbicos tratam “os gays” como se fossem pessoas que não pudessem sentar no mesmo banco de igreja que eles, não pudessem fazer uma prece ao mesmo Deus que o deles, não pudessem organizar um casamento.

Para os homofóbicos, “os gays” estão sempre lá, longe. Na festa fechada, na sauna, no bar lésbico, na boate, dançando em cima de um balcão. A péssima notícia (para os homofóbicos) é que LGBTs também  podem frequentar igrejas, fazer orações, casar de branco, morar num prédio de alto padrão e até fazer a gentileza de segurar a porta do elevador.

Seria inocente não pontuar que o discurso de ódio vira ato de ódio. Quando eu vejo as fotos do casamento de Pepita penso imediatamente em Dandara dos Santos, travesti moradora de Fortaleza. O discurso de ódio a espancou, a cultura do ódio a assassinou, em 2017. Será que Dandara algum dia sonhou em se casar?

Pepita sonhou. E realizou. O discurso de ódio que assassinou Dandara não impediu que Pepita se casasse, fosse feliz. E isso não deve fazer sentido para um propagador de ódio e intolerância.

É horrível ser vítima de LGBTfobia. Mas parece que ser LGBTfóbico tem sido um inferno.

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Coletivo discute o ontem e o hoje da vivência lésbica no Brasil https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/08/19/coletivo-discute-o-ontem-e-o-hoje-da-vivencia-lesbica-no-brasil/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/08/19/coletivo-discute-o-ontem-e-o-hoje-da-vivencia-lesbica-no-brasil/#respond Wed, 19 Aug 2020 15:54:12 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Design-sem-nome-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=221 Há 37 anos, mulheres lésbicas deram um basta aos recorrentes atos discriminatórios que sofriam no bar Ferro’s, ponto de encontro de parte da comunidade LGBT, no centro de São Paulo. 

O ato ficou conhecido como “stonewall brasileiro”, ainda que não tenha usado de violência, como ocorreu no bar Stonewall Inn, em Nova York. O levante, com leitura de manifesto e participação de políticos e grupos feministas, virou um marco da luta das mulheres que amam mulheres.

Com esse olhar histórico, o coletivo Cine Sapatão, que organiza exibições de filmes e discussões, vai reunir virtualmente pesquisadoras e ativistas para debater o ontem e o hoje da vivência lésbica no Brasil. O evento “(A)gosto das Lésbicas” terá ao todo cinco mesas, de 20 a 28 de agosto, com transmissão pela página do Facebook do Cine Sapatão.

O projeto tem apoio do Clube Lesbos, da Revista Alternativa L e da Editora Palavra Expressões e Letras (PEL). A participação das lésbicas na imprensa, no audiovisual e na ditadura militar brasileira serão alguns dos temas abordados.

O evento é aberto a todas as letras da sigla. Confira a programação:

20 de agosto – 20h30

Histórico da Imprensa Lésbica brasileira 

Paula Silveira-Barbosa (UEPG); Sheila Costa (Revista Alternativa L); mediação: Paula Curi 

 

22 de agosto – 17h30 

Lésbicas e ditadura militar 

Julia Kumpera (Unicamp); Hanna Korich (Editora Brejeira Malagueta); Fanny Spina (UFSC); mediação: Augusta Oliveira (Brown University).

 

23 de agosto – 13h00 

Origens do Orgulho e da Visibilidade Lésbica 

Camila Diane (UFSC); Rosângela Castro (Grupo Felipa de Sousa/ABL); mediação: Letícia Emília Batista (PUC-SP).

 

24 de agosto – 19h30 

Lésbicas negras no cinema 

Naira Évine (UFF); Sil Takazaki (UFSC); Nayla Guerra (Cine Sapatão); mediação: Vitória Bredoff – Cine Sapatão.

 

28 de agosto – 19h00

Lésbicas pesquisadoras: perspectivas e desafios 

Maria Helena Lenzi (UFSC); Suane Soares (UFRJ); mediação: Fanny Spina França (UFSC).

 

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O amor de avós e neto LGBTs que derreteu a internet https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/o-amor-de-avos-e-neto-lgbts-que-derreteu-a-internet/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/o-amor-de-avos-e-neto-lgbts-que-derreteu-a-internet/#respond Mon, 10 Aug 2020 03:28:10 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/avos-300x215.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=205 O que era pra ser só um embalo de sábado à noite acabou se tornando uma meta de relacionamento para muita gente. O vídeo de duas mulheres dançando agarradinhas ao som de “La Danza de los Mirlos”, música do grupo de cumbia peruana Los Mirlos, viralizou no Twitter no fim de semana.

Elas são Iani Costa, 68, e Margareth Medeiros, 59, e vivem na região metropolitana do Recife. As imagens são de Dante Olivier, 24, neto de Iani, e foram feitas no sábado (8). Até a publicação deste post, as imagens de apenas 10 segundos de duração já haviam sido curtidas por 100 mil usuários e vistas mais de 1 milhão de vezes.

O neto subiu o vídeo na internet sem que a avó soubesse. Ainda assim, a reação dela foi positiva. “Tá sendo revigorante, deu uma acordada, uma sensação gostosa. Tá bombando, tô viva”, reage a artesã.

Além das cenas explícitas de afeto, o vídeo surpreende por mostrar alguns segundos da intimidade de duas mulheres mais velhas, uma delas classificada pela sociedade como idosa, e que se amam. O relacionamento dura 11 anos.

Dante, Margareth e Iani

“Foi acontecendo. Eu não tava focada nisso, era uma colega de trabalho. Fomos pra frente”, relembra Iani. “Aí, comecei a conviver com a minha gatinha”.

Antes deste relacionamento, Iani foi casada por 26 anos, teve dois filhos e três netos. “Na minha época de casada, os conceitos eram outros. Meu pai era  aqueles ‘saiu da minha batuta, vai pra batuta do marido’ e eu casei com um marido assim, ditador. Eu nao era eu. Hoje eu sou eu. Talvez por isso eu seja mais feliz”, diz Iani.

“Hoje eu vivo o domingo da vida. Para mim, todo dia é domingo”, comemora.

Mas a “bomba LGBT na família” é Dante, não Iani. Ele é um homem trans. Aos 15 anos, ainda se apresentando como uma mulher cisgênero, ele foi descoberto namorando uma garota. “Foi muito difícil pra todo mundo, mas me sinto muito privilegiado de viver na família que eu tô. Aos poucos, esses assuntos foram sendo mais abordados e compreendidos”, diz o neto.

“A minha filha, mãe do Dante, nunca puxou assunto sobre sexualidade. Mas sempre foi uma coisa muito visível, porque o amor está nos olhos”, filosofa Iani. Já o outro filho, tio de Dante, participa um pouco mais da rotina da mãe. “Ele chama a Margareth de Madrecita”, comemora.

Confidentes, avó e neto LGBTs celebram juntos os afetos. “O amor é lindo. Independentemente da forma, o importante é amar. Quanto mais a gente ama, mais a gente é saudável, alegre. A gente é mais”, complementa Iani.

Dante e a avó Iani

“Eu to acostumado a entrar nas redes sociais pra ver vídeos que melhoram meu dia e pra mim foi gostoso ter postado um vídeo que melhorou a vida das pessoas”, diz Dante.

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As lésbicas que se passaram por primas para fazer sonhada viagem ao Egito https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/as-lesbicas-que-se-passaram-por-primas-para-fazer-sonhada-viagem-ao-egito/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/as-lesbicas-que-se-passaram-por-primas-para-fazer-sonhada-viagem-ao-egito/#respond Wed, 05 Aug 2020 09:00:57 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/estrangeiras-vale-300x215.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=195 Em alguns lugares da Europa o turismo tenta dar alguns sinais de vida. Na Espanha, 38 mil ingressos para entrada na basílica da Sagrada Família foram distribuídos de graça aos moradores de Barcelona. A medida é parte do plano de reabertura do monumento que ficou fechado por quatro meses durante a pandemia do novo coronavírus.

A jornalista Fabia Fuzeti, 43, e a produtora audiovisual Gabi Torrezani, 28, brasileiras residentes em Barcelona, estavam entre os visitantes do último domingo (2) e registraram tudo nas redes sociais do blog que assinam juntas, sobre turismo.

Foi um alívio para o feed do Instagram delas, que vinha sendo alimentado com fotos de antigos passeios ou pequenas comemorações, como quando terminou o estado de alarme na Espanha e as viagens dentro do país, fortemente atingido pela Covid-19, foram permitidas.

A retomada do turismo “tradicional” também é o recomeço de discussões sobre turismo LGBT. Fábia e Gabi são um casal, e essa informação muda tudo quando o assunto é viagem. “A gente nunca foi dentro do armário, então desde o primeiro post, a gente escrevia que era um casal, que viajávamos juntas. É a nossa vida”, relembra Fábia.

As blogueiras apontam uma carência de conteúdos específicos para LGBTs que querem viajar, sobretudo escrito por e para mulheres. “A gente precisa falar mais do que as paradas gays [pelo mundo] ou bares gays em Amsterdã”, critica Gabi.

Antes da viagem em si, há uma extensa pesquisa para além das condições do tempo, câmbio ou valor das passagens aéreas. As brasileiras buscam por leis que protegem LGBTs ou o contrário, algum tipo de regra que pune quem não se identifica como heterossexual. Países que recebem bem trabalhos de organizações não-governamentais e paradas LGBTs são possíveis bons destinos.

“Cada vez que a gente vai pra um lugar, a gente faz um post genérico: o que tem pra visitar, onde comer. Mas aí a gente faz um post específico para LGBTs: quais são os bares, o que tem de atração, como a gente se sentiu como um casal, se a gente podia dar as mãos, se a gente sentiu medo, se as pessoas olharam de cara feia”, explica Fábia.

Intermináveis dias e noites no Egito

“A gente sabia que era proibido. A gente achou que ia lidar bem”, relembram. Destino dos sonhos do casal, o país do norte da África não costuma receber bem LGBTs. Não há uma lei específica para julgar e condenar essa população, mas outras leis são usadas pra isso. O país engrossa a lista de mais de 60 nações em que relações homossexuais resultam em prisão. A maioria fica no continente africano. Segundo um relatório da Associação Internacional de Gays e Lésbicas, seis países preveem pena de morte para LGBTs.

“Depois de tanto tempo fora do armário, trabalhando com ativismo, nas férias, num momento de descanso, ter que voltar pro armário de uma maneira tão brusca, foi difícil. Foram 15 dias muito difíceis. A gente não pôde curtir todas as belezas que as pessoas não LGBT curtem”, relembram.

No Egito, elas se apresentavam como primas. E, como primas, não fazia sentido pedir uma cama de casal no hotel. Por isso, pediram duas camas de solteiro que de noite formavam uma só. Durante a viagem, Fábia fez aniversário. À meia-noite, juntas em um restaurante, elas não puderam sequer trocar um beijo. “É uma merda, você não pode dar um beijo na sua namorada porque você tá num lugar que não pode”, lamenta Fábia.

Na rua, nada de mãos dadas. “Duas mulheres ocidentais, não muçulmanas, viajando sozinhas — porque se você não tem um homem junto, você está sozinha — já causava muita estranheza. Nos hotéis, os guias falavam ‘ué, mas vocês estão sozinhas? Cadê o marido de vocês?'”

O último dia de viagem foi de comemoração. “Depois disso, a gente não quis ir mais pra lugares em que é proibido ser LGBT”, finaliza Gabi.


Ouça o podcast Todas as Letras:

Ao longo do tempo, o movimento conhecido hoje como LGBTQIA+ teve outras nomenclaturas. O L, quando recebeu reconhecimento, foi mudando de lugar no emaranhado de letras e ganhou a primeira posição. No entanto, a invisibilidade ainda é uma das maiores queixas das mulheres que se identificam como lésbicas. O 4° episódio do Todas as Letras, podcast de diversidade afetiva, sexual e de gênero da Folha, discutiu exatamente o que falta para que o devido reconhecimento seja dado. Para isso, duas mulheres, de gerações diferentes, trocam cartas que escreveram para si mesmas com relatos do passado e pretensões para o futuro:

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