Todas as Letras https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br Diversidade afetiva, sexual e de gênero Wed, 01 Dec 2021 18:54:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Se um disco voador pousasse na Paulista https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/07/11/se-um-disco-voador-pousasse-na-paulista/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/07/11/se-um-disco-voador-pousasse-na-paulista/#respond Sun, 11 Jul 2021 09:00:13 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/nave-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=458 Se um disco voador pousasse na avenida Paulista ninguém perceberia. Essa é a teoria que uma amiga querida me contou certa vez. Estaríamos, segundo ela, tão imersos nos nossos eus que nem daríamos atenção a uma bizarrice como essa. 

Ela ouviu essa hipótese desvairada de alguém e me transmitiu bem antes da pandemia, quando certamente as ameaças que nos rondavam era menos apocalípticas comparados aos dias de hoje.

No Brasil pandêmico,  muitos de nós têm lutado contra um vírus mortal, contra um presidente golpista, contra a fome, contra a desesperança. Essas tarefas árduas e os demais afazeres têm feito com que relativizemos todo o resto, parece.

Em menos de um mês, quatro mulheres trans foram mortas em Pernambuco. E continuamos andando pela avenida Paulista como se os aliens não tivessem acabado de pousar, prontos para atirar em nossos cérebros, implantar-nos chips e iniciar experimentos macabros com nossos corpos.

O que nos faz relevar a vida e morte de Roberta, uma dessas mulheres, incendiada no centro do Recife, aos 32 anos? Ela teve 40% do corpo queimado, os dois braços amputados e morreu no hospital da Restauração, no centro da cidade.

Quero acreditar que seja nossa legítima e árdua luta pela sobrevivência e não um total desprezo o motivo do nosso desapreço.

Do outro lado do Atlântico, uma reação inversamente proporcional à nossa em um caso bem parecido me chamou atenção.

Na Espanha, Samuel Luiz Muñiz, um brasileiro, gay, foi espancado até a morte na porta de uma boate em La Coruña. O crime, motivado possivelmente por homofobia, chocou o país e protestos tomaram as ruas.

A Espanha tem vacinado sua população (vive agora um aumento de infecções por covid depois de afrouxar demais restrições, é verdade) e não tem um fã de torturador no poder. Será que esse é o segredo? Senão, como é que eles viram a nave descendo?

Pelo retrovisor, o Brasil vê barbáries e mais barbáries sem nunca ter gritado um ai: só no primeiro semestre deste ano, 89 pessoas trans foram mortas no Brasil, sendo 80 assassinatos e 9 suicídios. Os dados foram compilados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). De acordo com o boletim, houve ainda 33 tentativas de assassinatos e 27 violações de direitos humanos. Em seis meses.

Ao que tudo indicada, a nave extraterrestre já pousou na Paulista. E parece que estão atirando.

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Quando faz sol no Recife https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/quando-faz-sol-no-recife/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/quando-faz-sol-no-recife/#respond Wed, 30 Jun 2021 18:46:11 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/recife-1-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=451 Quando faz sol no Recife, os banhistas na praia de Brasília Teimosa, às 14h30, se abrigam do sol que queima a pele.

No palácio do Campo das Princesas, se o governador pernambucano Paulo Câmara faz uma pausa no expediente durante um dia quente para tomar um chá ou um café, certamente dá uma leve assopradinha para evitar queimar a sensível pele dos lábios.

No Cais de Santa Rita, no dia 24 de junho, Roberta não teve guarda-sol ou assopradinha que a amparasse. O que fazer quando seu corpo está em chamas?

Roberta, uma mulher trans de 32 anos, teve o corpo incendiado em pleno centro do Recife. Um adolescente foi apreendido acusado de cometer o crime. Segundo o Jornal do Commercio, Roberta vive pelas ruas da capital pernambucana.

No hospital da restauração, onde está internada, teve o braço esquerdo amputado e, ao que tudo indica, perderá o braço direito na tarde desta quarta-feira (30), quando o sol já não brilha com tanta força.

As queimaduras de terceiro grau corroeram sua pele da epiderme até os músculos. As lesões atingiram o abdômen, o tórax, os braços e as mãos, totalizando 40% do corpo, segundo a TV Jornal.
Ninguém em Brasília Teimosa ou no palácio do Campo das Princesas sabe como é estar na pele de Roberta.

 

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Domingo no parque https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/domingo-no-parque/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/domingo-no-parque/#respond Sun, 27 Jun 2021 18:50:22 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/diferente-300x215.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=448 Em 2013, eu convidei uma urbanista para me dar uma entrevista no parque Augusta, no centro de São Paulo, durante o longo imbróglio sobre a construção de uma área de lazer ali. Eu estava no primeiro ano da faculdade e aquela apuração fazia parte de um exercício da disciplina de jornalismo online. 

Eu tirei um 9, mas com certeza minha nota seria menor se a professora Alexandra Gonsalez, da universidade Metodista de São Bernardo do Campo, onde estudei, soubesse dos outros assuntos muito mais relevantes que deixei de lado para fazer aquela matéria. 

Eu tinha vergonha de morar onde morava, 30 quilômetros ao sul do parque Augusta, num bairro pouco conhecido no distrito do Grajaú, em São Paulo. Por isso, diferentemente de meus colegas, que fizeram pautas tão comezinhas quanto a minha, não falei de alguma questão da minha rua ou do meu bairro. Mas de um lugar duas horas de ônibus, trem e metrô distante de mim.

Meus colegas e meus professores nunca souberam onde eu morava exatamente. Nunca fiz um trabalho em grupo em casa durante a graduação, por exemplo. Aliás, nem no ensino médio. Nem no ensino fundamental. Nunca um colega de escola esteve na minha casa.

Sentia uma grande vergonha do chão de cimento queimado (hoje é moda, mas no começo dos anos 2000 era a opção mais em conta) e das paredes inacabadas da minha casa que, certa vez, foram até o leito de morte de um rato. Depois de comer veneno, o roedor entrou por entre os blocos laranjas de tijolo baiano da sala e dormiu o sono eterno. O mau cheiro motivou uma investigação dos meus pais em busca do pequeno corpo, só mais tarde encontrado. Quebra parede. Tira o rato. Fecha parede.

Eu tinha medo, por exemplo, que, outra vez, a fossa escavada no quintal se abrisse e engolisse tudo, como aconteceu com a lavanderia da minha avó. Sorte ela não estar no tanque no dia, pois seria engolida pela mistura de lama e bosta.

Eu não concebia a ideia de levar alguém em casa e, de repente, acontecer um assassinato. Na infância e na adolescência, não foram poucas as vezes em que minha mãe e eu, na volta do culto de domingo, desviamos de ruas em que alguém havia acabado de ser executado.

Se eu contasse tudo isso à professora Alexandra, talvez ela baixasse minha nota. Por que raios fui até o parque Augusta falar de algo que toda semana falavam aqui na Folha ou no SPTV, se havia questões ao meu redor como acúmulo de lixo e entulho e a infestação de roedores, falta de esgoto encanado e a violência urbana?

Esse aprendizado, que poderia se restringir ao fazer jornalístico, mas que levo pra vida, desmoronou em minha cabeça nesta manhã de domingo (27), quase uma década depois, ao pensar sobre amanhã, o dia do orgulho LGBT. Do que eu devo me orgulhar? Por anos achei que me posicionar como alguém parte desta comunidade fosse ser meu maior desafio. Mas meu armário era muito maior, tinha muito mais coisas.

Durante toda a minha vida profissional até aqui segui negando quem eu era. No meu primeiro emprego como jornalista, mimetizei boa parte dos meus colegas, frequentei os mesmos bares, li os mesmos livros e tive as mesmas opiniões. Não que isso tenha sido errado. Mas eu absorvia tudo aquilo e não dava nada em troca, porque achava que não tinha o que oferecer. Me via como um terreno vazio, mas, mal sabia eu, já estava completamente loteado.

Levei um tempo até conhecer algumas referências culturais, políticas e estéticas de que todos falavam porque passei a infância e a adolescência na igreja, o único teatro, o único cinema e o único espaço de convivência social e política que eu podia acessar com o dinheiro que tinha e sem enfrentar longas distâncias de ônibus e trem.

Foi nesta manhã de domingo que percebi que meu orgulho de ser LGBT só pode existir se eu puder me orgulhar de todo o resto. Ter uma fé cristã-protestante e uma origem periférica são parte do que sou. E é isso o que posso oferecer.

Amanhã é o dia de LGBTs se orgulharem por quem são. E por completo. Orgulho por ser LGBT e torcedor de um time de futebol. E pai. E mãe. E candomblecista. E operador de máquinas agrícolas. E reverendo. E cientista. E médica do SUS. E evangélico. E tudo o que não tem mais espaço no armário e é motivo de orgulho.

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Escavando a purpurina: um mergulho na história LGBT do Brasil https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/04/escavando-a-purpurina-um-mergulho-na-historia-lgbt-do-brasil/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/06/04/escavando-a-purpurina-um-mergulho-na-historia-lgbt-do-brasil/#respond Fri, 04 Jun 2021 16:02:06 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/capa_tal-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=433 A história é contada pelos vencedores. E, certamente, os LGBTs não parecem ser os autores. Dos poucos rastros que existem ao olhar para trás, os jornais Chanacomchana e Lampião da Esquina ou as bíblias Devassos no Paraíso e Além do Carnaval se destacam. No entanto, quase tudo foi produzido durante ou pós o período de repressão militar no Brasil, entre 1964 e 1985. 

Mas esse jogo está virando. Pesquisadores têm ido a campo, buscando pelos trapos da memória LGBT brasileira. O acervo Bajubá, um dos mais destacados, começou em 2010. E foi por acaso.

Hoje, alguns itens do arquivo fazem parte da mostra Madalena Schwartz  – Travestis e transformistas na SP dos anos 70, em cartaz no Instituto Moreia Salles em São Paulo até setembro.

As primeiras peças do Bajubá vinham de pessoas que colecionam revistas de pornografia e ou tinham em suas estantes livros da história LGBT. Havia, também, contribuições mais informais. “Às vezes, vinha de pastinha das Spice Girls, pastinha da Madonna, pastinha da Ana Carolina”, relembra Remom Bortolozzi, psicólogo social e um dos membros-fundadores do acervo.

Boletim Chana com Chana, n.6, nov.-dez.-jan. 1984-1985
Acervo Bajubá

“Em 2010, a gente ainda não tinha o museu da Diversidade, não tinha referencia de aparato público específico sobre memória LGBT. A gente só tinha contato com os livros Devassos no Paraíso [de João Silvério Trevisan], e Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, [de James Naylor Green], mas eram livros sem nova edição, difíceis de achar. Só se encontrava em sebo, por 200, 300 reais”, relembra.

O jeito foi se basear em acervos acadêmicos, como o da Unicamp, e em iniciativas do Grupo Gay da Bahia e do grupo Dignidade, de Curitiba, que digitalizou um dos mais conhecidos jornais gays da década de 80, o Lampião da Esquina. 

Revista Close, n.6, jun. 1980
Acervo Bajubá

Mas o estopim para a formação do acervo Bajubá foi a descoberta de um nanquim em um antiquário que retratava uma cena de sexo oral lésbico. O achado despertou nos pesquisadores uma sensação parecida com a de avistar uma pintura rupestre em uma caverna escura.

“Segundo minhas amigas, claramente [o nanquim] foi desenhado por um homem, por que uma mulher estaria chupando o umbigo da outra, não o clitóris”, debocha Bertolozzi. Mas o que chamou mesmo a atenção era a inscrição “4ª ilustração do Eu Sou Uma Lésbica”. 

Acervo Bajubá

Esses folhetins, descobriu-se depois, eram publicados na Status, uma revista de nu feminino da década de 70, baseados na obra de Cassandra Rios, uma das escritoras mais perseguidas durante a ditadura militar brasileira. Segundo uma reportagem da BBC News Brasil, durante o regime, 36 dos seus 50 livros publicados foram censurados.

“Esses trapos que a gente vai encontrando em antiquários e que pra maioria não significa nada, são a memória LGBT. A gente tem que escavar, ir atrás de sebo, leilões, nas nossas coleções pessoais, que, às vezes, nem nós mesmos damos importância”.

Nas pesquisas, Bertolozzi e sua equipe identificaram identidades e comportamentos vistos hoje como muito recentes, como a de pessoas trans, mas datados do começo do século passado.

A preservação da memória LGBT na América Latina é tema de um ciclo de debates online promovido pelo Instituto Moreira Salles, como parte da mostra Madalena Schwartz. Nos dias 9 e 10 de junho, o evento vai reunir Remom Bortolozzi e a arquivista cubana Librada González Fernández, do Archivo CubaneCuir. 

Aqui no Brasil, sem grandes pretensões, o acervo  Bajubá deslanchou na esteira da digitalização dos sebos e chegou aos dois mil e quinhentos itens –ainda sem catalogação técnica. Há, no total, 12 colaboradores, em diferentes grupos de trabalho. Os arquivos podem ser acessados pelo site e presencialmente, com agendamento prévio.

De todo o material, destacam-se o acervo de pornografia e arte homoerótica brasileira com mais de 600 edições de revistas da década de 60 aos dias de hoje, uma coleção de medicina, saúde e memória da pandemia de HIV/Aids na década de 80 e exemplares da imprensa alternativa durante a ditadura militar.

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Caso Chú: ainda vale a pena ser preconceituoso https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/caso-chu-ainda-vale-a-pena-ser-preconceituoso/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/caso-chu-ainda-vale-a-pena-ser-preconceituoso/#respond Mon, 10 May 2021 03:15:39 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Captura-de-Tela-2021-05-09-às-21.46.25-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=399 A atleta Chú Santos, atacante do Palmeiras e da Seleção Brasileira, postou um vídeo neste domingo (9) se desculpando por um comentário preconceituoso nas redes sociais sobre a morte do ator Paulo Gustavo, uma das mais de 400 mil vítimas da Covid-19 no Brasil.

Jogadora Chú Santos fez comentário ofensivo sobre o ator Paulo Gustavo Reprodução/Facebook

Numa postagem do Facebook, uma usuária identificada como Maria Padilha postou um texto comparando as diferenças que o cantor gospel Irmão Lázaro, também morto pela Covid, tinha em relação ao ator de “Minha Mãe É Uma Peça”.

O conteúdo ressaltava que, apesar das oposições religiosas e de orientação sexual, ambos foram acometidos pelo mesmo vírus. Chú Santos, em um infeliz comentário, afirmou “Blz, morreram pelo mesmo vírus, a diferença é: que um, Lázaro, foi para o céu e Paulo Gustavo, para o inferno”.

Mas Paulo Gustavo e Irmão Lázaro tinham muito em comum: pertenciam a duas minorias de direitos, ganhavam o pão levando suas mensagens adiante por meio da arte em um país que diminui a importância da classe artística e, no fim da vida, os dois estiveram no mesmo barco, o das 400 mil vítimas da covid. Coincidências.

Chú, uma mulher negra no futebol, que também sabe o que é ser uma minoria, apostou em outra coisa que também une muitos de nós nestes tempos: o ódio. A atleta nem se deu conta de que tem tanto em comum com Lázaro e Paulo. Triste.

Em nota, o time feminino do Palmeiras afirmou que Chú Santos “se manifestou de maneira equivocada em sua rede social, reconheceu o erro e prontamente se desculpou. O assunto foi tratado internamente e a atleta foi orientada para adequação de seu comportamento”. Mais do que nunca, os preconceitos precisam ser enfrentados de forma pública.

Os times femininos de futebol poderiam ser oásis de acolhimento a LGBTs, visto que algumas das mais famosas atletas são abertamente lésbicas. Mas há um longo caminho pela frente. Os preconceitos –nas quatro linhas, nas arquibancadas e nas redes– precisam ser combatido com rigor, não com notas protocolares. Do jeito que foi encaminhado, o caso Chú faz parecer que ser preconceituoso ainda vale a pena.

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Vamos ser viados pra sempre? https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/vamo-ser-viado-pra-sempre/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/vamo-ser-viado-pra-sempre/#respond Wed, 05 May 2021 03:02:12 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Design-sem-nome-7-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=390 No episódio 28 do programa Vai Que Cola, do canal Multishow, Paulo Gustavo, na pele da personagem Bicha Bichérrima, e Marcus Majella, como Ferdinando, gritaram uma frase aparentemente boba, mas que uma porção de LGBTs mundo afora sequer imagina ter a segurança de gritar também. “Vamos ser viados pra sempre?”.

Paulo Gustavo, morto nesta terça-feira (4), no Rio de Janeiro, aos 42 anos, levou multidões ao teatro (quantos estiveram pela primeira vez numa plateia por causa dele?), lotou salas de cinema e explodiu na televisão.

Lá, na fábrica de sonhos, o ator mostrou que o sonho de ser gay e aceito pela mãe pode ser real; na vida pessoal, testemunhou que o sonho de LGBTs de formarem uma família é possível também, exige principalmente amor.

Levantando a voz apenas para fazer rir, Paulo Gustavo normalizou a existência LGBT e os relacionamentos homoafetivos rompendo muros como quem escava uma rocha em busca de pedras preciosas.

Por muitas vezes foi criticado por interpretar bichas escandalosas e de, mesmo sem querer, reduzir a chacota o jeito de ser gay. É que quando não riem de nós, podem rir para nós, Paulo sacou que esse era um caminho. Como a gargalhada era certa, tanto fazia. Paulo aproveitou para gritar que queria ser viado pra sempre. E assim será.

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Um peixe fora d’água https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/27/um-peixe-fora-dagua/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/27/um-peixe-fora-dagua/#respond Tue, 27 Apr 2021 09:00:56 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Design-sem-nome-5-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=375 É assim, meio isolada, que Yara Lins, 32, se sente. “Se vocês conhecerem travestis que trabalham com máquinas, me marquem. Sabe peixe fora d’água? Sou eu”, diz em um vídeo postado no TikTok no começo de abril. 

A tratorista e também cabeleireira ainda não encontrou outra trans que pilotem uma máquina parecida. Mas, convenhamos, fica difícil encontrar uma variedade tão grande de gente numa cidade tão pequena quanto Comendador Gomes, em Minas Gerais, onde Yara vive.

Eu moro numa cidade de 3 mil habitantes. A primeira trans da cidade que se casou, que ficou 10 anos casada”, garante.

Yara conseguiu o emprego depois de ser indicada pelo ex-marido a uma vaga na empresa de aplicação de defensivos agrícolas em lavouras de laranja. “A empresa tinha medo [de me contratar]. Achavam que eu não ia dar conta. Meu ex-marido disse pra eu fazer o teste. E eu estou neste serviço até hoje”, comemora.

A cabeleireira e tratorista Yara Lins – arquivo pessoal

O emprego frutificou, o casamento não. O término da relação, bastante doído, foi o catalisador da ida de Yara para o TikTok. “Eu tive um começo de ansiedade e de depressão após a separação e eu passei a colocar a minha vida ali [na rede social]. As pessoas me incentivavam a fazer os vídeos também, porque sabem que é raro uma travesti fazer o que eu faço”, conta.

Yara tem mais de 7 mil seguidores, 50 mil curtidas e o coração ainda quebrado. “Tô bem machucada ainda. Você vive 10 anos com uma pessoa e termina ouvindo cada coisa, sabe? Então machuca”, desabafa a tratorista.

Roçadeiras, atomizadores e barras de herbicida são outras ferramentas de trabalho operadas por Yara durante o turno que começa às 6 da manhã e termina às 5 da tarde. À noite e aos fins de semana, o trabalho é no salão de beleza. “E eu não gostava de trator nem de cortar cabelo. Hoje em dia são minhas paixões”, confessa.

Tópico comum na biografia de muitas mulheres trans, a prostituição aparece no currículo de Yara. “Eu trabalhava com corte de cana e uma amiga me chamou para fazer programa. Vi homens matando travestis perto de mim, em Goiânia, e eu falei ‘isso não é pra mim’. É muito sofrido você ter relação sexual com uma pessoa que você não quer pra conseguir dinheiro”, desabafa.

Além de Goiânia, Yara “fez rua” em Fronteira, no interior de Minas Gerais, e em Itumbiara, Goianira e Inhumas, todas no interior de Goiás.

Na internet, Yara responde a perguntas de internautas. “A gente é capaz de absorver muita coisa e de ensinar muita coisa, então o que as pessoas me perguntam eu nunca levei como maldade. As pessoas têm curiosidade em saber, então eu respondo”, diz.

“As pessoas sempre veem travesti como droga, doença ou prostituição. Foi aí que pensei em abrir pra perguntas. Já perguntaram se eu sou operada, por exemplo. E eu respondo”, explica Yara.

Na empresa, ela conquistou o direito de usar o vestiário feminino e, depois de sua chegada ao quadro de funcionários, palestras sobre diversidade entraram na agenda de treinamentos. “As pessoas me perguntam como que eu trabalho, às vezes à noite, com mais de 30 homens e só eu lá, de mulher. Eu imponho respeito”, finaliza a tratorista e cabeleireira Yara Lins.

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Não é pelas crianças https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/nao-e-pelas-criancas/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/nao-e-pelas-criancas/#respond Thu, 22 Apr 2021 21:04:21 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/foto-blog.jpg https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=372 Escondida na imagem dos pequenos, a deputada estadual paulista Marta Costa (PSD) propôs um projeto de lei na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) que proíbe publicidade com LGBTs ou famílias homoafetivas.

A deputada parece desconhecer as crianças da geração Z, pouquíssimo preocupadas com quem fulano, fulana, fulane ou fulanx se deitam, e também parece não saber que orientação sexual não é –pra falar de tempos atuais–, máscara contra o coronavírus, cada dia se escolhe uma.

Marta Costa afirma que as propagandas trazem desconforto emocional a inúmeras famílias e mostram práticas danosas às crianças. É uma falácia. O medo não é de um menino ver um outdoor de shopping com dois pais e uma criança e falar “taí, vou ser gay”. O medo é de que se normalize a existência de uma família LGBT.

Os mais conservadores políticos devem saber: ninguém, numa manhã de terça-feira, depois de beber um gole de café, resolve se tornar LGBT. Afirmo que eles devem saber porque há entre eles mesmos apoiadores LGBTs. Eles sabem. Mas esses conservadores têm medo de que alguém que não é como eles, ou como o pai deles ou como o avô deles tome uma parcela do poder.

Os religiosos sabem que são mínimas as chances de algum governo obrigar padres ou pastores a realizarem cerimonias religiosas de pessoas do mesmo sexo. Mas, vez ou outra, essa profecia apocalíptica é levantada. O medo é permitir que aconteça qualquer tipo de união homoafetiva, em qualquer lugar.

Duvido, também, que os homofóbicos, aqueles mais poderosos, se atrevam a negar, digamos, um prato de comida a um LGBT, ou um copo d’água a um LGBT, ou o sal a um LGBT que, com sua voz de LGBT, peça: “me passe o sal, por favor”. Eles só não querem que os desviados tenham assento cativo na mesa. Um prato beleza. Mas, pô, uma cadeira?

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O agrogay https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/21/o-agrogay/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/21/o-agrogay/#respond Wed, 21 Apr 2021 23:40:34 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Design-sem-nome-2-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=361  

“Agricultor e agrogay”. Foi assim, com o apelido recebido de seus fãs na rede social TikTok, que Ivan Rangel, 27, disse que queria ser apresentado neste texto. 

O termo agrogay é uma referência a uma outra expressão, usada bastante na internet: agroboy. É aquele cara normalmente branco e hétero, com alguma grana, do interior ou não, e que escuta sertanejo. O playboy do campo, digamos assim.

Quando começou a postar os vídeos, surgiram comentários como “agro pop, agro gay”. “Achei estranho, mas depois gostei da ideia. O agro é pop, o agro é tudo, o agro é gay. Essa é a piada que eu mais recebo”, revela.

O agricultor, agrogay e tiktoker Ivan Rangel – arquivo pessoal

Até os 19 anos, Rangel afirma ter vivido como hétero, mesmo sabendo, desde os 12, que era gay. “[Sair do armário] foi um transtorno imenso com a família, com os amigos, com os vizinhos das fazendas daqui. Essa pressão que criam, de não poder ser sensível na zona rural, é muito grande. Isso pesou muito na minha decisão de me assumir. As pessoas cobram muito uma masculinidade da gente. E a gente acaba mantendo essa masculinidade”, conta o agricultor e agrogay.

Rangel diz morar na fazenda dos pais, na zona rural de São Pedro do Suaçuí, em Minas, cidade com pouco mais de 5 mil habitantes, distante 300 quilômetros de Belo Horizonte. Ele trabalha para os pais e também em propriedades vizinhas no cuidado de animais e no cultivo de frutas, legumes e verduras. No tempo livre, faz vídeos para o Tiktok. 

Há algumas semanas, o cantor sertanejo Rodolffo, que forma dupla com Israel, foi bastante criticado por militantes do movimento negro e LGBT por declarações homofóbicas e racistas que fez no programa Big Brother Brasil, da TV Globo. O artista se justificou, dizendo que, por ser do interior, é um pouco “chucro”.

Rangel concorda com o ex-BBB de que no interior há, sim, gente “mais chucra”, mas não pela falta de informação ou de LGBTs vivendo nas áreas rurais. O tiktoker, inclusive, passa os dias respondendo a dúvidas de outros usuários da rede social.

As questões giram em torno de sua descoberta da homossexualidade, da reação com sua família e se se relacionaria também com mulheres. Mas a maior parte das mensagens são de outros LGBTs que vivem no campo com pedidos de dicas para se assumir LGBT a famílias conservadores. E a audiência do agrogay tem crescido: hoje são 27 mil seguidores e mais de 244 mil likes.

“Tenho amigos travestis, tenho amigas lésbicas, tenho amigas trans mas eles não vivem aqui na região Eu acho que tem bastante LGBT na zona rural, mas por causa do medo, eles não saem do armário”, imagina Rangel.

Aliás, foi um amigo que uniu Rangel ao seu atual companheiro, Thálibe, de 36 anos, também agricultor. “Eu tinha acabado de terminar um relacionamento com minha ex-namorada e tinha um amigo, com quem já havia conversado sobre minha sexualidade, e ele disse que tinha um amigo que era ‘a minha cara'”, descreve.

Ivan Rangel e seu marido – arquivo pessoal

E deu match. As primeiras conversas começaram no Facebook, em duas semanas eles se conheceram pessoalmente e, após dois meses de namoro, se casaram. O casal está junto há 6 anos.

Rangel afirma ter começado o TikTok sem muito propósito, inspirado em Gustavo Tubarão, mineiro como ele, de 21 anos, com mais de 7 milhões de seguidores nas redes sociais. “Meu sonho é gravar com a turma do Gustavo Tubarão”, revela.

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Anyky Lima: a travesti que pôde envelhecer https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/anyky-lima-a-travesti-que-pode-de-envelhecer/ https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/anyky-lima-a-travesti-que-pode-de-envelhecer/#respond Wed, 14 Apr 2021 19:24:12 +0000 https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Design-sem-nome-300x215.png https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/?p=352 Morreu na manhã desta quarta-feira (14) em Belo Horizonte a travesti e ativista LGBT Anyky Lima, aos 65 anos. Ela estava em tratamento contra um câncer no reto, descoberto há um ano, já em estágio avançado. 

Chegar à chamada terceira idade é por si só um grande feito quando se trata da população trans. Anyky era velha e se orgulhava disso.

Anyky Lima – reprodução/Instagram

“Esperamos que ela tenha um descanso merecido”, lamentou Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), que confirmou o falecimento da amiga.

Aos 12 anos, Anyky foi expulsa de casa, no Rio de Janeiro, por ser LGBT. Na rua, trabalhou até os 50 anos como profissional do sexo. “Eu conheci o amor, eu conheci o dinheiro, eu conheci tudo nesse lugar [na rua]. Então eu não posso dizer que a prostituição e a zona foram ruins pra mim. Foi um aprendizado para que eu pudesse sobreviver”, disse Anyky em entrevista ao Projeto Colabora.

A ativista relatou ter sido detida por diversas vezes durante a ditadura militar, ter perdido amigos e colegas de trabalho durante o período mais duro da pandemia de HIV e ter sofrido até seus últimos dias os efeitos perversos da aplicação de silicone industrial. “Tudo o que eu consegui foi com meu corpo, minha luta”, definiu Anyky, em entrevista publicada em 2018.

Diante de sua máquina de costura, vó Anyky, como era chamada por muitos LGBTs, fez pequenas revoluções.”Eu desejo que as ações que ela fez aqui, tirando animais da rua, tirando pessoas em situações de rua, sejam reconhecidas e não tenham fim”, desejou Keila.

“Ela nos ensinou a não desistir, a ir buscar e fazer valer nossos direitos. Anyky é sinônimo de luta”, definiu Gisella Lima, coordenadora de projetos que morou por uma década com a ativista.

Anyky foi presidente do Cellos-MG (Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais) e representante da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) no estado.

O corpo dela será sepultado nesta quinta-feira (15), em Belo Horizonte, em cerimônia restrita devido à pandemia de coronavírus.

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